Todo texto, seja oral ou escrito, é sonoro. Com infinitas construções possíveis, é natural que o final de uma palavra com o começo de outra acabe formando uma terceira, sem querer. Pode acontecer ainda um encadeamento desagradável de sons. Nesses dois casos, temos a cacofonia, um vício de linguagem caracterizado pelo encontro desarmônico de sons.
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O que é cacofonia
”Cacofonia” vem do grego, κακοφωνία, que significa som desagradável. De um lado, alguns especialistas da língua portuguesa (DUBOIS et al., 1978; CHERUBIM, 1989; SOUZA, 2010) a definem genericamente como “cadeia sonora desarmônica” e consideram que colisão, hiato, eco, (má) aliteração e cacófato são cacofonias. Por outro lado, temos estudiosos (BECHARA, 2006; CEGALLA, 1994; PIGLER, 2009) que igualam cacofonia ao cacófato, isto é, à formação de uma terceira palavra pelo encontro de outras duas.
Enfim, tanto uns quanto outros estão de acordo sobre o cacófato: a formação de uma palavra por uma coincidência sonora. Por exemplo, “só negam” é um cacófato, porque a cadeia de sons forma uma outra palavra, “sonegam”. Esse incidente corrompe a objetividade e por isso é inconveniente em situações formais – mas interessante em piadas e poemas (ALVARENGA, 2014, p. 25; COCCO, 2015).
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10 exemplos de cacofonia
Se na formalidade a cacofonia perturba, na literatura ou no humor ela é um triunfo. Portanto, dependendo do objetivo e do contexto, o cacófato passa a ser um trocadilho ou calembur, uma figura de linguagem pouco comentada, embora seja muito usada (SOUZA, 2018; FIGUEIREDO, 1968), inclusive comercialmente (SANTOS, 2008). Para cada exemplo abaixo, imagine diferentes intenções na comunicação: caso atrapalhe, é cacófato; caso ajude, é trocadilho.
- ”Vou-me já”: vou mijar? Na fala, existe uma tendência a reduzir os sons (fonemas) em prol da agilidade. Por isso, normalmente dizemos “vou mijá” ou “vou pagá a conta”, sem o “r” final. Daí, facilitamos a ocorrência de certos cacófatos ou trocadilhos.
- ”Os professores vão para o Bloco H”: na hora da fala, essa frase pode soar “os professores vão para o Bloco cagá”. Talvez algum professor se ofenda, talvez professores piadistas se divirtam no intervalo.
- ”Desculpa então”: você ouviu “pintão”? Pode ser que esse pedido de desculpas não seja lá muito poético, mas pode também “quebrar o gelo” em certas situações.
- ”Ela tinha poucas frutas, então deu uma por cada”: sem querer, apareceu uma “latinha” e uma “porcada” nessa frase. Ao tentar convencer alguém, o cacófato pode quebrar a credibilidade que se estabelecia.
- ”É pavê ou pa comê?”: aqui temos o clássico dos trocadilhos. A cacofonia pode acontecer dentro de uma palavra, como destacou Said Ali (apud BECHARA, 2006). Ainda, a redução fonética da fala produz cacófatos como “pa vê” (para ver), que não acontecem na escrita.
- ”Francis, com sua voz suave, mente”: eis um exemplo que serve à literatura. Como Francis consegue mentir com a voz suave? A ilusão provocada pelo trocadilho sugere o próprio jeito dele mentir, enganando sorrateiramente seu locutor, isto é, suavemente. Pelo fato de existir elementos na frase que estabelecem outras relações com o trocadilho, esse exemplo se aproxima do recurso retórico japonês chamado Kakekotoba (NAKAEMA, 2012).
- ”Ode ao Burguês”: esse é o título de um poema de Mário de Andrade. Nele, o autor foi irônico ao transformar a “ode”, poema alegre e elogioso, em “ódio ao burguês”. Contudo, ao tentar homenagear sinceramente, um “ode ao pai” pode ser catastrófico.
- ”Amar é um deserto e seus temores”: nesse trecho da música “Oceano” de Djavan, “Amar é um” soa “amarelo” ou “a maré”, um duplo trocadilho. Mas atenção: em uma fala romântica, a confusão pode “quebrar o clima”.
- ”Paz sem voz”: temos aqui outro trecho de música, “Minha alma”, do Rappa. É muito comum “paz” parecer “pais”, o plural de pai (ou pai e mãe).
- “Alma minha”: é o início de um soneto de Luiz Vaz de Camões, no qual se lê “maminha”. Vale refletir porque os gramáticos não citam esse exemplo ao tratarem da cacofonia ou de cacófatos.
É importante ressaltar que nenhum dos autores citados acima comenta esse limite tênue entre cacófato e trocadilho, entre cacofonia e poesia. Ainda, os raros comentários a respeito não são elaborados por quem determina a norma padrão (MELO, 2014; TAVARES, 1996, p. 366 apud NAKAEMA, 2012, p. 149-150; MOISES, 2004; GRANERO, 2006). Portanto, fica evidente que os trocadilhos, tão comuns no cotidiano, sofrem descriminalização linguística, a qual se estende a diversas práticas, há muito tempo (CALLOU, 2008).
Vídeos sobre esse vício de linguagem truqueiro
Separamos ótimas videoaulas para que você possa revisar e entender um pouco mais sobre cacofonia.
Esse e outros vícios de linguagem
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Nesta vídeoaula, você confere outros vícios de linguagem e exemplos de cada um. Além disso, você também aprende a diferença entre figuras e vícios de linguagem.
Mais exemplos de cacofonia
Quer conhecer outras cacofonias para se prevenir? Confira esta videoaula! Aqui você aprende a identificar as cacofonias junto com o professor.
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Fala x escrita
Essa videoaula traz um detalhe interessante: algumas cacofonias mudam se o texto for oral ou escrito. Afinal de contas, é uma questão sonora.
Ficou claro que ora os cacos machucam, ora formam mosaicos, não é mesmo? A assonância é um interessante efeito sonoro que pode elucidar mais como a música interna das palavras implica no significado – vale a pena conferir.
Referências
Dicionário de linguística (1978) – Jean Dubois et. al.
Dicionário de figuras de linguagem (1989) – Sebatião Cherubim
Aspectos do emprego de vícios de linguagem em textos da língua portuguesa (2010) – Eduardo da Cruz Souza
Moderna gramática portuguesa (2006) – Evanildo Bechara
Novíssima gramática da língua portuguesa (1994) – Domingos Paschoal Cegalla
Vícios de linguagem e norma culta (2009) – Dirce Bautista Pigler
60: Poéticas Políticas (2014) – Lucas Fernandes Alvarenga
A “língua” inflamada de Antônio Carlos Lima (2015) – Marta Helena Cocco
A teoria do humor brasileiro em movimento (2018) – Maicon Ferreira de Souza
Para uma estilística do humor (1968) – Arlete Bonato de Azevedo Figueiredo
Modos de simbolização híbridos: um estudo sobre o Trocadilho Verbo-visual enquanto estratégica retórica no Design de Identidades (2008) – Jeims Duarte dos Santos
Humor e criação lexical: a expressividade na trova humorística (2014) – Pedro da Silva de Melo
Teoria literária (1974) – Hênio Tavares
O Kakekotoba nos poemas clássicos japoneses: análise da morfossintaxe e do campo semântico (2012) – Olivia Yumi Nakaema
Dicionário de termos literários (2004) – Massaud Moisés
A linguagem das marcas de calçados da moda: um enfoque publicitário (2006) – Arlete Eni Granero
A propósito da norma, correção e preconceito linguístico: do presente para o passado (2008) – Dinah Callou

Por Naiana Mussato Amorim
Naiana Mussato Amorim é pesquisadora e escritora. Graduada em Letras e mestre em Teoria Literária pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e doutora em Literaturas Comparadas pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É autora de "Deslumbramentos" (poemas, 2015, Oficina Raquel). Atualmente é redatora na Contteudo e colunista no jornal Gramado News.
Amorim, Naiana. Cacofonia. Todo Estudo. Disponível em: https://www.todoestudo.com.br/portugues/cacofonia. Acesso em: 06 de March de 2025.
1. [URCA (2010)]
Sobre os vícios de linguagem, relacione a segunda coluna com a primeira:
(A) barbarismo;
(B) solecismo;
(C) cacófato;
(D) redundância;
(E) ambiguidade.
( ) É admirável a fé de meu tio;
( ) Não teve dó: decapitou a cabeça do condenado;
( ) Faziam anos que não morriam pessoas;
( ) Coitado do burro do meu irmão! Morreu.
( ) Intervi na briga por que sou intimerato.
C – D – B – E – A
2. [UFAC (2019)]
Analisando os vícios de linguagem listados abaixo, relacione adequadamente:
I. ambiguidade
II. pleonasmo
III. cacófato
IV. eco
V. solecismo
( ) A boca dela tinha dentes cariados.
( ) Aquele era o pai da moça que estava doente.
( ) Vou te contar uma novidade inédita.
( ) Aqueles rapazes estava sem rumo.
( ) Teve vontade de ir à cidade só por maldade.
Está correta a sequência:
A)III, I, II, V, IV.
B)III, I, V, II, IV.
C)III, I, II, IV, V.
D)V, I, II, IV, III.
E)IV, II, III, I, V.
A